terça-feira, 15 de março de 2011





JOÃO CÂNDIDO E A CONSCIÊNCIA NEGRA
Rosenverck E. Santos

Em 22 de novembro de 1910 dezenas de marinheiros, a maioria negros, tomaram os navios nos quais trabalhavam e apontaram os canhões para a capital federal – Rio de Janeiro – fazendo uma série de exigências. Reclamavam
dos baixos salários, das péssimas condições de trabalho, saúde e alimentação e exigiam o fim dos castigos corporais por meio das chibatas, razão pela qual este movimento ficou conhecido por Revolta da Chibata. Cobravam que a Marinha e o Brasil deveriam fazer valer a República de cidadãos e não uma fazenda escravocrata, como atestava o manifesto redigido pelos marinheiros. Então, qual o real significado dessa revolta? Qual a importância dos marinheiros negros, em especial João Cândido para aquele momento e, principalmente, para os dias de hoje quando comemoramos o dia da consciência negra?

Em 1895, alguns anos após a abolição institucional da escravidão, a Escola Nacional de Belas Artes premiava com a medalha de ouro o espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos pela pintura intitulada a “A redenção de Cam”.

O quadro é emblemático, pois logo após a proclamação da República a elite brasileira oriunda dos grandes escravocratas buscava pensar o país sob as bases republicanas. A ideologia dos ex-escravocratas brasileiros afirmava que era preciso garantir a ordem para atingir oprogresso. Ou seja, o país precisaria entrar no rol dos países civilizados. Necessitava-se conquistar o padrão civilizacional e isso só seria possível se nos assemelhássemos e tivéssemos como referência o continente europeu. Logo de pronto, um problema se instalou: - como ser um país civilizado – à semelhança europeia – se a maior parte da população brasileira era composta por negros/as e seus descendentes?

A pintura do espanhol procura responder a esta inquietação. Na cena reproduzida vê-se uma senhora negra com as mãos para o céu agradecendo o fato de seu neto ter nascido branco, visto ser fruto da relação de um homem branco com uma mulher mestiça. O que isso representa? Aponta para a necessidade de embranquecer o país para atingir a civilização tão sonhada pelos escravocratas. Precisava-se regenerar a nação brasileira composta por pessoas de cor – por meio de seu embranquecimento. A imigração europeia foi uma resposta concreta a esta ideologia.
O início da República, portanto, foi marcado por ações que pretendiam afastar a população negra das cidades e torná-las parecidas com a Europa. Essa é uma das razões, por exemplo, da Revolta da Vacina e da expulsão da população negra e pobre para os morros do Rio de Janeiro. A redenção de Cam é um retrato da ideologia escravocrata remanescente do Império e que marcava essencialmente a constituição da República e os seus órgãos e instituições com a Marinha brasileira. Representava também todo um projeto da elite republicana para a população negra deste país.

Sabe-se que muitas ideias e justificativas foram utilizadas para escravizar os/as africanos/as. Uma tem importância fundamental: a justificativa religiosa. Setores da Igreja Católica buscando legitimar a escravização africana afirmaram baseados na bíblia (Gênesis 9, 21-27) que os/as africanos/as eram herdeiros de Cam, filho de Noé, amaldiçoado por seu pai e predestinado a ter uma vida de servo, bem como seus descendentes. Num malabarismo histórico, os/as africanos/as forma tornados descendentes de Cam e, portanto, passíveis do amaldiçoamento bíblico.

Nesse sentido, a escravização e os castigos corporais como as chibatadas dos chicotes senhoriais seriam o preço a pagar pela redenção do pecado cometido por Cam. Era a sina da população negra africana e seus descendentes visando a regeneração e purificação dos pecados. A Marinha do Brasil, portanto, empreendia e legitimava a ideologia da escravidão que durante século vicejou em terras nacionais e que com a instituição da República foi reconfigurada por meio da ideologia do branqueamento e, posteriormente, com o mito da Democracia Racial.
Mas se esse pensamento funcionou para a classe dominante legitimar seus atos, não serviu aos escravizados e seus descendentes para aceitarem a suposta determinação celestial. Pelo contrário, desde os primeiros dias da escravidão que a resistência a ela se fez sentir de inúmeras formas e de variadas ações: suicídios, fugas, quilombos, quebra de maquinaria, queima da produção, “assassinato” dos senhores e revoltas, muitas revoltas...

O 20 de novembro passou a significar todo esse conjunto de ações que combateu a escravidão, o racismo e busca, até os dias de hoje, construir um país justo e democrático. O dia da consciência negra – comemorado contemporaneamente - é uma data para refletir sobre a condição de vida da população afrodescendente e empreender ações para transformá-la. É uma data de reflexão-ação-reflexão, é um exemplo da práxis transformadora com o objetivo de superar as desigualdades sociais e raciais e edificar outra sociedade livre do racismo e da hierarquização social.
Mas o que João Cândido e Revolta dos Marinheiros em 1910 têm a ver com isso?
A revolta dos marujos negros e pobres foi muito mais que um movimento só contra as chibatas. Representou uma reação a ideologia racista e as desigualdades sociais e raciais presentes no Brasil Republicano e materializadas na expulsão dos trabalhadores/as pobres e negros/as para as favelas e na clivagem sócio-racial da marinha com seus oficiais brancos e descendentes dos oligarcas latifundiários e escravocratas e os marujos em sua maioria negros recrutados à força. Ainda se acreditava – como na maldição de Cam – que os negros deveriam ser chicoteados, pois só assim seriam pacificados e regenerados. Engano total!

João Cândido e seus marujos negros provaram o contrário. Disseram para o Brasil inteiro que não aceitavam o mito religioso – mesmo sem ter consciência dele – nem tampouco as condições desiguais impostas. O racismo, as discriminações e o projeto de embranquecimento e “regeneração” pretendido pela elite brasileira foi combatido intensamente por meio dos navios (Minas Gerais, São Paulo e Bahia) tomados pelos marujos negros e pobres liderados por João Cândido.

Sendo a primeira revolta da Marinha organizada e liderada exclusivamente por marujos provou que era possível – sem a interferência ou contribuição de oficiais do alto escalão – empreender uma revolta com planejamento, disciplina e objetivo amplos. Além disso, foi resultado de anos de experiências e viagens, de ter notícias sobre revoltas de marinheiros em muitas partes pelo mundo como a ocorrida em 1908 na Rússia. Em 1909, por exemplo, João Cândido esteve na Grã-Bretanha e teve notícias do movimento dos marinheiros russos do Encouraçado Potemkin em 1905.

Portanto, a Revolta da Chibata muito mais que um movimento contra os castigos físicos desferidos contra os marinheiros, foi resultado do conjunto da experiência dos marujos com outras revoltas pelo mundo, bem como da recusa em aceitar as condições da ideologia da época que se materializava na Marinha. A partir da colaboração intelectual de Francisco Dias Martins (O mão negra) redigiram seu manifesto, pararam a capital federal por praticamente uma semana e fizeram o governo aceitar suas reivindicações.
O mesmo Francisco Dias exibia – com uma faixa no pescoço – os dizeres “ordem e liberdade” , ou seja, os revoltosos atacavam frontalmente as bases da ideologia republicana estampadas em nossa bandeira – ordem e progresso. O progresso que a elite queria atingir por meio da eliminação cultural e física da população negra não teria êxito e esta mesma população negra estava disposta a conquistar a liberdade não apenas para si, mas contra um projeto de país que se mostrava racista. Negando os princípios republicanos estampados na bandeira, pois nem a ordem hierárquica seguiram, os marinheiros de 1910 fizeram a capital federal se deparar com a dura realidade da população negra no Brasil.

De forma contraditória, no entanto, a revolta dos marinheiros em 1910, ensinou que as elites desse país têm dificuldade em cumprir os compromissos assumidos, mentem sem o menor pudor para atingir seus objetivos e, portanto, não são passíveis de confiança. Isto porque, logo após aceitarem as reivindicações dos revoltos e prometerem anistia a todos; o governo brasileiro sob a liderança do Marechal Hermes da Fonseca representante das oligarquias latifundiárias, ordenou a prisão dos marinheiros iniciando aí uma jornada de prisões, exílios e assassinatos.

Isso ocorre justamente depois dessa outra imagem histórica onde João Cândido, enquanto comandante-geral da esquadra rebelde logo após ler o Diário Oficial que continha o decreto de anistia dos revoltosos. Imagem que representa a vitória dos oprimidos contra o racismo e a desigualdade, mas também, a ausência de honestidade de nossas elites, marca que permanece até os dias atuais. Revela toda a face desigual e escravocrata da Marinha e também a face racista da República do Brasil. Mas, acima de tudo, mostrou que João Cândido seguiu o exemplo de Zumbi dos Palmares. Dois dias depois do 20 de novembro o almirante negro demonstrou qual a verdadeira essência da Consciência Negra.

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http://www.lab-eduimagem.pro.br/jornal/artigos.asp?imagem=03&NUM_JORNAL=25&NUM_SECAO=03&ID=387


sobre o(a) autor(a):
Professor da UFMA. Militante do Movimento Negro Quilombo Raça e Classe

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